Coisas boas (e alguns segredos) de Viseu Dão Lafões – parte I

Quando se fala em Dão, pensamos em vinho, Lafões traz à memória vitela assada, e Viseu… bom, Viseu é associada a Viriato, o guerreiro que defendeu a Lusitânia do exército romano – embora em boa verdade não se saiba qual o seu local de nascimento, nem se alguma vez terá pisado as terras da agora cidade. É assim a nossa memória, selectiva e moldada pelo hábito, pelo que lemos e ouvimos com mais frequência, não poucas vezes filtrada por interpretações velhas de séculos e que de verdadeiro têm por vezes muito pouco.

Longe dos holofotes turísticos – como de resto sucede com a maior parte do interior de Portugal – a região de Viseu Dão Lafões permanece um território neutro e basicamente ignorado mesmo pela maioria de nós, portugueses, assim como que envolvido numa espécie de neblina existencial: sabemos que está ali, talvez até já tenhamos passado por lá e visto alguma coisa, mas não temos opinião formada sobre ele, nem sequer grande curiosidade sobre o que haverá por aqueles lados.

O que é, simultaneamente, um pecadilho e uma bênção. Pecadilho porque é uma região cheia de bons motivos para ser conhecida. E bênção porque ainda tem o condão de nos surpreender pela positiva – o que agora nem sempre é fácil, nestes dias em que parece que já sabemos e vimos tudo, se não ao vivo, pelo menos na televisão ou nas redes sociais (as modernas bíblias pelas quais nos guiamos).

Deixem-me por isso falar-vos hoje de algumas coisas boas da região de Viseu Dão Lafões. Algumas já conheço há vários anos, outras tive a oportunidade de conhecer recentemente, em boa companhia e guiada por quem é e gosta de ser daqui – a melhor receita para apreciar uma região fértil em paisagens amplas, boa produção agrícola, lugares com História e pessoas acolhedoras.

Termas de São Pedro do Sul, o charme de outros tempos

Parece-me justo começar por São Pedro do Sul, o local desta região em que estive mais vezes e o que primeiro visitei na minha vida. Em boa verdade, não tenho memórias dessa primeira vez, a não ser as que ficaram guardadas em fotografia e numa história contada pela minha mãe para ilustrar o quanto eu já era traquinas quando ainda nem tinha um ano de idade. As águas termais de São Pedro do Sul são sulfúreas (e por isso um bocado malcheirosas), têm origem numa falha tectónica e chegam à superfície a uma temperatura de quase 69°C, facto facilmente constatável pela fonte que fica ao lado do Balneário Rainha D. Amélia (o mais antigo), sempre envolta no vapor que se solta da água.

Já apreciadas pelos Romanos, a sua composição mineral torna-as particularmente adequadas para o tratamento de problemas da pele, dos ossos e articulações, e das vias respiratórias – razão pela qual o meu pai fazia todos os anos uma época nestas termas. A minha história envolve também a fonte de São Martinho, onde me deixaram no carrinho a brincar com a água para depois descobrirem que eu tinha conseguido inclinar o dito cujo e que a água tinha passado a cair-me em cima da cabeça (consta que estava toda encharcada e super feliz)…

A fonte ainda existe. É fácil de identificar pelo painel de azulejos azuis e brancos datado de 1943, com motivos florais e duas quadras românticas, e fica ao pé da minúscula capela de granito com o mesmo nome, inserida no espaço arborizado que acompanha a margem sul do Vouga. Apesar do seu tamanho reduzido e aspecto simples, esta capela também está ligada a um início, o do nosso país: foi erguida por ordem de D. Afonso Henriques, que veio às Caldas Lafonenses recuperar de uma fractura na perna sofrida na batalha de Badajoz. A pequena capela que vemos hoje já não é a original, mas ainda assim é antiga quanto baste, pois data do século XIV.

É precisamente o nosso primeiro rei que dá o nome ao balneário mais recente das Termas, criado em 1987 e modernizado em 2008. A realeza sempre teve uma preferência especial por estas águas. Em inícios do século XVI, D. Manuel I patrocinou a construção do Hospital Real das Caldas de Lafões. Nos finais do século XIX, depois de substituído o hospital por um balneário mais moderno (para a época), a Rainha D. Amélia passou a ser presença regular nas Termas, razão pela qual este balneário ainda hoje tem o seu nome, funcionando actualmente apenas para tratamentos de bem-estar.

O rio Vouga é o outro leitmotiv das Termas de São Pedro do Sul. São águas diferentes, sossegadas e frescas, que dividem a localidade ao meio, sem no entanto separarem as suas partes. Há duas pontes que ligam as margens; uma delas é só pedonal e é também o melhor miradouro sobre o rio e as suas atracções principais: a escultura da torneira vermelha, semelhante a outras que há pelo mundo fora, e o repuxo alto que se projecta do lago. No lado norte, destacam-se as coberturas piramidais brancas do café mais famoso das Termas, o Bom D’Jau. Estrategicamente debruçado sobre o rio e com um ambiente que parece directamente saído dos anos 80, não é de estranhar que seja um dos locais mais frequentados das Termas de São Pedro do Sul.

Nos extremos da ponte estão os dois hotéis mais emblemáticos da localidade. Do lado sul, o belíssimo edifício apalaçado que foi inaugurado em 1943 como Palace Hotel e hoje pertence à cadeia de alojamentos do Inatel. Do lado norte, o Grande Hotel Thermas, que já existe desde 1919 e foi o nosso alojamento por uma noite, no fim-de-semana da minha mais recente visita. Com uma fachada simples e remodelado interiormente para se adaptar a uma estética mais “moderna”, a decoração conjuga muito bem elementos clássicos antigos – lustres, grandes espelhos dourados, azulejos, colunas – com propostas artísticas mais arrojadas. À hora em que chegámos, o jantar já estava a ser servido, o tinido dos talheres a misturar-se com os sons de piano da música de fundo, discreta, recriando uma atmosfera de tranquilidade e requinte que me transportou facilmente para o século passado (e assim como que a pedir que eu trocasse as calças e os ténis por uns sapatos de verniz e um vestido esvoaçante…).

No entanto, o nosso jantar não foi no hotel, mas precisamente no restaurante que eu já conhecia de uma visita anterior: Adega do Ti Joaquim. É sempre bom voltar a lugares onde fomos felizes e constatar que não perderam qualidades. O ambiente continua tradicional e despretensioso, a comida de raiz regional continua bem apurada, e a simpatia do serviço também não diminuiu. Aqui, a vitela é assada à moda de Manhouce e o bacalhau à moda da casa, mas não se escusam a preparar de propósito um prato vegetariano para quem pedir. Pela parte que me toca, fiquei adepta das petingas com molho de escabeche e, gulosa assumida que sou, das migas de pobre, que não são migas nem de pobre, mas sim uma sobremesa deliciosa que leva, além de pão, leite e açúcar, dois dos meus ingredientes favoritos: amêndoa e canela. Vir a banhos para estes lados é correr o sério risco de sair com menos achaques, certamente, mas com mais uns quilos em cima.

Com boa comida no prato e bom vinho (do Dão, obviamente) no copo, as conversas fluem sempre melhor, e este jantar não foi excepção. Tivemos a companhia bem-disposta de José Carlos Almeida, da Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões, que nos falou das iniciativas que têm sido organizadas nos 14 concelhos da região com o intuito de a valorizar e promover, em especial a rede de percursos (pedestres e cicláveis) na natureza, da conservação do património arquitectónico e cultural, e do apoio às actividades e aos produtos tradicionais. É uma região tão vasta e diversificada que dá para muitas horas de conversa, muitos dias de visita, e muitas histórias para contar.

Vouzela, um coração que bate forte

Desde 1990 que não passam comboios em Vouzela, mas a memória do extinto ramal de Viseu da linha do Vouga permanece bem viva no património da vila. Foi junto à antiga estação dos caminhos-de-ferro que começámos o nosso passeio pelos domínios deste município, que adoptou como lema ser “o coração do centro”. O velho e ferrugento depósito de água, já desactivado, que parece vigiar a estação é bem explícito quanto à actual utilização do espaço: nele está escrito, em letras garrafais, “Central de Camionagem”. Mas a floreira colorida, feita com pneus velhos e que evoca uma locomotiva e as suas carruagens, não deixa esquecer a anterior finalidade do edifício, apesar dos volumosos autocarros estacionados mesmo ao lado.

A antiga ponte ferroviária sobre o rio Zela continua a ser o ex libris da vila, um gigante de pedra com mais de 190 metros de comprimento assente sobre 15 arcos semi-circulares. Os carris foram substituídos por pavimento calcetado e a ponte faz agora parte de um dos percursos pedestres do concelho, além de ser um miradouro privilegiado sobre a vila. Aqui, a finalidade original do lugar é relembrada pela locomotiva E202, fabricada em 1911 pela empresa alemã Henschel & Sohn, cujo fumo e barulho enchiam os ares quando puxava as carruagens do Vouguinha, o nome carinhoso dado ao comboio que percorria este troço da linha do Vouga. Hoje está muda e estática, e é apenas a vigilante centenária e imperturbável de um domínio que já não é seu.

Olhando para leste, chama-nos a atenção uma igreja de granito com a torre campanário separada: é a Igreja Matriz, dedicada a Nossa Senhora da Assunção, cuja construção inicial remonta a finais do século XII. Além da torre com os dois sinos, que só foi acrescentada no século XVII e quase parece uma segunda fachada da igreja, os elementos exteriores mais interessantes são as fieiras de cachorros que suportam os beirais do telhado, ornamentados com rostos e cabeças de animais – nitidamente esculpidos em vários períodos diferentes, a julgar tanto pelo desgaste da pedra como pelas próprias características de pormenor. O interior mantém alguma simplicidade, com as paredes quase nuas e o tecto de madeira escura. A excepção, como não podia deixar de ser, fica por conta da capela-mor e dos seus retábulos laterais, com a profusão de talha dourada típica do período barroco, e da capela funerária mandada construir, na parede sul, pela família Almeida nos séculos XV-XVI, que tem um retábulo maneirista menos exuberante.

Seguimos pela margem do rio, que no Verão é praticamente um ribeiro, dominado por um salgueiro-chorão que cresce mesmo no meio (e há já muitos anos, a julgar pelo porte). Umas escadinhas deixam-nos depois na ponte a que chamam romana, mas cuja construção os historiadores presumem ser bem mais recente, provavelmente posterior ao século XVI. Estamos no centro histórico de Vouzela, e seguindo para a direita chegamos à Capela de São Frei Gil, o santo padroeiro da vila, onde nasceu supõe-se que por volta de 1190. De seu nome Gil Rodrigues de Valadares, andou por outras terras portuguesas e por Espanha e França, país em que se tornou frade dominicano. Adquiriu fama suficiente para a ele se associarem lendas sobrenaturais e histórias diversas, e morreu na minha agora cidade adoptiva, Santarém, onde viveu durante vários anos no Convento Dominicano. A devoção à sua pessoa aumentou ao longo do tempo, e no século XVI foi-lhe erguida uma capela no lugar onde se encontra a que vemos hoje, cuja fachada é uma preciosidade da arquitectura barroca joanina. Foi a esta capela que em 1626 o referido convento de Santarém cedeu uma relíquia de Frei Gil (que na altura ainda não era santo, pois só foi beatificado em 1748): o osso do seu maxilar inferior. A data da sua morte, 14 de Maio, foi adoptada como feriado municipal de Vouzela.

À volta da capela há várias casas apalaçadas setecentistas, como a Casa da Praça, ou a que ostenta o brasão mais antigo do município e abriga actualmente o Museu Municipal. Continuando a subir, passamos pelo edifício da Biblioteca, um antigo solar atravessado por um túnel e com umas frestas curiosas na fachada, depois pela Igreja da Misericórdia, facilmente reconhecível pela sua fachada revestida de azulejos azuis e brancos, e estamos na Praça da República, onde se perfila o pelourinho, também do século XVIII.

É ao lado desta Praça que encontramos um edifício quinhentista conhecido por Casa das Ameias. Há alguns anos era apenas um esqueleto de pedra arruinado e a ameaçar cair. Hoje, após uma cuidada e bem-sucedida recuperação – que incluiu a capela de S. João Baptista, parte integrante da casa – está prestes a abrir como unidade de alojamento local. Os proprietários receberam-nos com a maior simpatia, e além de nos mostrarem a casa (decorada com muito bom gosto, misturando o antigo e o moderno, e cheia de detalhes imaginativos), apresentaram-nos à delícia suprema desta terra: o pastel de Vouzela.

Se nunca tiveram a sorte de provar esta maravilha em forma de doce, fechem os olhos e imaginem folhas de uma massa feita com farinha e água, bem mais finas do que papel de carta, recheadas com um creme de ovos tão suave que se derrete na boca quase sem darmos por ele. Não me peçam mais pormenores, porque não os sei. A receita é velha de quase 200 anos, e diz-se ter sido criada pelas monjas do Mosteiro de Santa Clara do Porto. O segredo da confecção dos pastéis veio com duas delas para Vouzela, mas foi descoberto por Maria da Conceição Figueiredo, moça órfã que tinha sido acolhida em criança pela família dessas freiras. A técnica usada para desvendar o mistério foi um furo no soalho de madeira, por onde espreitou as ditas freiras quando estas tratavam de fazer o tão apreciado doce. Sabendo que o segredo é a alma do negócio, continuou a guardá-lo e usou-o em proveito próprio mais tarde, quando se viu viúva com um rancho de filhos e percebeu que poderia tirar rendimento da venda dos apetitosos pastéis.

Actualmente, esta iguaria doce continua a ser produzida artesanalmente por um número muito reduzido de pessoas, e nenhuma delas abre mão do seu segredo. Depois de termos provado os pastéis que nos ofereceram na Casa das Ameias, é claro que tínhamos de levar alguns connosco. Fomos comprá-los à Casa Castanheira, onde são produzidos desde 1948, e usámos toda a nossa simpatia para tentar convencer o Sr. Carlos, neto da fundadora da casa, a revelar-nos a tal receita tão bem guardada. Como era de esperar, os nossos esforços foram em vão… mas isso não nos incomodou nada, pois ficámos com a melhor parte – ou seja, pudemos comê-los.

Vouzela é terra antiga de séculos, mais antiga ainda do que as primeiras referências conhecidas ao seu nome, que datam de finais do século XI. A nossa visita ao município não poderia, por isso mesmo, terminar sem conhecermos pelo menos uma das suas torres medievais. As três domus fortis (casas-torre) que chegaram aos nossos dias em estados diversos de conservação são as de Alcofra, Cambra e Vilharigues. Desta última apenas estão de pé duas das quatro paredes, e há vestígios de que terá tido três pisos. As paredes ausentes foram substituídas por uma estrutura moderna de metal e vidro, cujo interior está organizado como espaço expositivo que nos conta a história, só parcialmente conhecida, desta casa-torre e da região que a rodeia.

Associa-se à Torre de Vilharigues, embora sem grandes certezas, a história de um herói do século XV, Dom Duarte de Almeida. Alferes-mor de D. Afonso V, ficou conhecido como “o Decepado” por ter pedido as duas mãos na batalha de Toro, em Castela, onde carregou valentemente o estandarte de Portugal mesmo depois de gravemente ferido. Terá herdado de seu pai a Torre e Casa de Vilharigues, e consta que D. Afonso V lhe atribuíra anteriormente o Reguengo de Lafões. Curiosamente, é possível que tenha (também ele) morrido em Santarém, para onde foi viver com a família quando regressou a Portugal, depois de recuperado dos ferimentos que o deixaram moribundo.

Situada num ponto alto, a Torre de Vilharigues é um fantástico miradouro sobre a envolvente da vila de Vouzela e o vale de Lafões. Esta paisagem excepcional, onde o verde continua a ser a cor predominante, é a melhor imagem que podemos reter na memória quando nos despedimos deste concelho que mostra ser, sem sombra de dúvida, um coração palpitante de vida.

Num próximo post trago-vos mais coisas boas desta região tão acolhedora do centro de Portugal.

Fonte: https://viajarporquesim.blogs.sapo.pt/coisas-boas-e-alguns-segredos-de-viseu-87165